Boate Kiss
Após julgamento, movimento pede justiça aos réus
Desde a realização do julgamento pelo júri popular que resultou na condenação de quatro pessoas pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria em 2013, centenas de manifestações, não somente de operadores do Direito, mas também de 'leigos' curiosos, vem tomando as redes sociais no sentido de apoiar os quatro réus e criticar o posicionamento do Ministério Público, que pediu - e conseguiu - a condenação deles por homicídio simples praticado com dolo eventual (quando o agente assume o risco de matar).
Foram condenados os donos da boate, Elissandro 'Kiko' Spohr (22 anos e seis meses) e Mauro Hoffmann (19 anos e seis meses), Marcelo de Jesus dos Santos (18 anos), vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava na casa naquela madrugada, e Luciano Bonilha Leão (18 anos), assistente de palco da banda.
Tal movimento tomou maior força após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, que resultou na prisão dos quatro. Apesar da concessão de um habeas corpus pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os quatro seguem presos graças a uma decisão liminar de Fux, determinando que, mesmo em caso de manutenção do HC em decisão de mérito, eles não fossem colocados em liberdade. O pedido foi feito pelo Ministério Público, já quando a 1ª Câmara Criminal do TJ julgava o mérito do HC, com os desembargadores, inclusive, já tendo formado maioria pela manutenção dele.
A decisão deixou o mundo jurídico surpreso e, em grande parte indignado. Para especialistas, ela é ilegal porque a suspensão de liminar não pode ser usada para reverter habeas corpus e porque violou a presunção de inocência. Mesmo com o atropelo de Fux, a 1ª Câmara Criminal concluiu o julgamento, em 17/12, optando por manter o habeas corpus - o que implicaria na imediata soltura dos réus. No entanto, Faccini Neto não expediu os alvarás de soltura, usando como justificativa a decisão de Fux de sustar os efeitos do HC.
As defesas imediatamente se mobilizaram em recursos contra a decisão de Fux, que ainda não foram julgados, e que vem ganhando apoio de especialistas e entidades ligadas ao Direito. De acordo com o advogado Mario Cipriani, que defende Mauro Hoffmann, esse movimento tem levado a manifestações públicas, por exemplo, de associações de advogados criminalistas e associações de estudos jurídicos. "Há também uma série de habeas corpus impetrados por brasileiros que não conhecemos, todos no sentido de pedir a soltura. É um olhar social sobre um resultado que não representa o que aconteceu. A criação artificial do dolo eventual foi para excluir de responsabilidade os órgãos públicos", diz ele.
"O ministério público foi muito atingido nesses nove anos e se utilizou do seu poder e privilégios. Dói ver uma instituição que eu até então admirava agir desse modo, suprimindo instâncias, demostrando todo seu ódio contra quatro pessoas que foram escolhidas como bois de piranha", conclui.
Sócio de Cipriani e também defensor de Hoffmann, o advogado Bruno Seligman de Menezes, também se manifesta. "Normalmente os defensores relutam muito com julgamentos públicos e midiáticos porque dificilmente eles favorecem o réu, geralmente eles prejudicam. Esse julgamento foi rigorosamente o contrário. Os réus saíram absolvidos pela opinião pública, embora condenados pelo Conselho de Sentença". "Claro que há muita gente que acha que essa condenação foi certa. Mas se formos ver as reações nas redes sociais, inclusive nas redes sociais do Ministério Público por exemplo, vamos ver uma revolta muito grande, não com a condenação em si, mas com o fato de que chamaram de dolo eventual algo que nitidamente é uma negligência, ou seja, é um crime culposo; e de condenaram quatro enquanto deviam estar julgando 40", completa.
Responsável pela defesa de Luciano Bonilha Leão, o advogado Jean Severo também observa tal movimento. "O Ministério Público sai desse julgamento fragilizado. A gente sempre teve na figura do promotor, um promotor de justiça. E o que eles fizeram não foi buscar justiça, foi dar uma vingança para a família. Era isso que eles queriam. Estavam propostos a isso", comenta Severo. "Antes era a tragedia da Kiss, hoje é a injustiça da Kiss. E o País inteiro entendeu isso", finaliza.
Amicus curiae
Entre as manifestações de apoio há entidades que protocolaram no Supremo Tribunal Federal o pedido para ingressar como amicus curiae na Suspensão de Liminar n°1.504/RS (que trata da prisão dos quatro). Entre elas está a Associação Juízes para a Democracia (AJD).
A associação argumenta que a suspensão da liminar não seria a via processual adequada para impugnar decisões proferidas em sede de Habeas Corpus. De acordo com a AJD, a medida é restrita ao âmbito cível, sem previsão legal para a extensão de seus efeitos a matérias de cunho penal e processual penal. Há ainda a lembrança de que o STF não admite o ajuizamento de suspensão de liminar com nítido intuito recursal.
"A AJD possui especial preocupação com o sensível tema da supressão de instância, estando atenta às consequências que poderão porventura advir da ruptura do sistema recursal, especialmente em matéria penal, se as partes puderem se valer do expediente da suspensão de segurança para 'saltar' os tribunais competentes para analisar determinadas questões, em sede de recursos próprios", diz a petição enviada ao Supremo.
Ainda de acordo com a AJD, "permitir que toda e qualquer concessão de ordem de Habeas Corpus possa ser cassada monocraticamente com fundamento em legislação sem qualquer aplicabilidade no âmbito penal, como ocorrido nos presentes autos, representa um retrocesso no que diz respeito às bases de um Estado democrático de Direito".
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