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Caso Kiss

Tribunal de Justiça marca julgamento dos recursos

Reprodução/JC imagem ilustrativa - fireção ilustrativa - Kiko Spohr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha

A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) marcou o julgamento dos recursos do processo criminal que trata do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria em 2013. As apelações dos quatro réus serão julgadas no dia três de agosto, em sessão prevista para começar às 14h. Em dezembro passado, eles foram condenados em primeira instância por homicídio simples com dolo eventual.

O pedido principal das quatro defesas é pela anulação do júri e novo julgamento para os acusados. Foram condenados os donos da boate, Elissandro 'Kiko' Callegaro Spohr (22 anos e seis meses) e Mauro Londero Hoffmann (19 anos e seis meses), e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos (18 anos) e o assistente de palco Luciano Bonilha Leão (18 anos). O grupo se apresentava na casa noturna no momento do incêndio.

Nas razões, as defesas dos quatro réus destacam diversos pontos que consideram nulidades, que vão desde o sorteio dos jurados até a referência ao silêncio dos réus por parte da acusação, passando pela imparcialidade do juiz que presidiu o júri, Orlando Faccini Neto, que entre outras decisões questionáveis, permitiu manifestações de familiares e vítimas presentes no salão do júri.

O Jornal CIDADE fez um apanhado das razões apresentadas pelas defesas - e que ganham apoio de especialistas em direito penal e direito processual penal de todo o País.

O silêncio dos réus

É garantido aos réus o direito de permanecer em silêncio e se esta for sua vontade, sua escolha não pode ser levada em conta para prejudicá-lo, tampouco ser mencionada pela acusação. Durante o júri, houve ao menos dois momentos em que tal regramento foi desrespeitado. O primeiro deles, durante o interrogatório do réu Luciano Bonilha, praticado pela promotora de Justiça Lucia Helena Callegari, que insistiu em perguntar a razão do silêncio de Luciano - ocasião em que houve uma pequena intervenção do juiz, cuja frase, "enforque-se com a corda da liberdade", viralizou na internet. O advogado de Luciano, Jean Severo, argumenta que o próprio réu, "que não possui qualquer conhecimento técnico-jurídico, e por isso talvez tenha depreendido que o silêncio poderia ser interpretado em seu desfavor" se viu constrangido a explicar as razões de seu silêncio.

Outro momento foi durante a fala do assistente de acusação, advogado Pedro Barcellos, durante os debates. "A defesa, de pronto, se insurgiu contra a afronta ao direito ao silêncio. Entretanto, a palavra já dita produz seus efeitos [...] não se pode "apagar da memória" dos jurados a referida observação", alegam os defensores de Hoffmann, Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes.

Ofensa a paridade de armas

Outro ponto é a chamada ofensa à paridade de armas. Tatiana Borsa, advogada de Marcelo dos Santos, destacou a ampla utilização pelo MP de uma maquete em 3D da boate. "Soubemos da maquete poucos dias antes, pela imprensa, e ao tentar acessá-la não conseguimos porque precisava de um software específico. Foi preciso que o MP juntasse ao processo essas informações, o que ocorreu somente depois, já fora do prazo. Dessa forma, três das quatro defesas somente tiveram acesso a esse material no momento do júri", explica. "Se o Ministério Público estava elaborando o material, que, com certeza, não fora feito de um dia para o outro, deveria ter acostado aos autos com bastante antecedência, para que as Defesas pudessem ter acesso", conclui.

Jader Marques, defensor de Kiko Spohr, também cita dois pontos. O primeiro deles foi o fato de o Ministério Público ter feito uso do Sistema de Consultas Integradas, da Secretaria de Segurança Pública e cujo uso é exclusivo a órgãos estaduais de investigação, para estabelecer o perfil dos jurados, identificando, por exemplo, se algum possui familiares encarcerados ou visitou alguém nesta condição. "A defesa não tem acesso ao sistema e muito menos aos extratos de consulta realizada pelo MP", diz. O segundo ponto diz respeito a distribuição do mobiliário no plenário do júri. "A questão está ligada à indevida colocação da acusação ao lado do juiz de Direito, permanecendo a defesa em posição de visível inferioridade e/ou distanciamento", explica.

Marques e Jean Severo também apontam que houve quebra da isonomia e paridade entre acusação e defesa por ter sido permitido à assistência de acusação arrolar vítimas, acrescentando cinco pessoas ao rol de outras cinco já indicadas pelo Ministério Público. Dessa forma, a acusação ficou com dez vítimas arroladas, enquanto cada defesa pode arrolar apenas cinco vítimas para que fossem ouvidas.

Sorteio dos jurados

As defesas apontaram nulidades cometidas já no sorteio dos jurados que compuseram o conselho de sentença. Jader Marques pontuou que foram realizados três sorteios (3/11, 17/11 e 24/11), dois deles fora do prazo estabelecido no Código de Processo Penal (CPP), que dispõe que "o sorteio será realizado entre o 15º e o 10º dia útil antecedente" ao júri (1/12). "Por esta violação a defesa não teve condições de fazer a devida análise dos nomes sorteados", explica.

Severo aponta que 150 jurados foram sorteados, enquanto o CPP determina o sorteio de 25. Tais situações, conforme ele, impossibilitaram que a defesa pudesse examinar a "qualidade dos jurados" que compuseram o Conselho de Sentença.

Os advogados também explicam que não tiveram acesso a lista completa de jurados, enquanto o Ministério Público teve.

Deficiências nos quesitos

Os advogados também pontuam que houve falhas na quesitação (perguntas feitas aos jurados pelo juiz na votação). Jader Marques e Tatiana Borsa apontam que houve "ausência de quesito obrigatório" por conta dos pedidos de que fosse incluído quesitos referentes a teses defensivas apresentadas aos jurados.

Já no quesito que trata sobre o dolo eventual, tanto Jader Marques como Cipriani e Bruno de Menezes explicam que houve a sonegação de informação fundamental aos jurados. O Magistrado não teria respeitado a determinação do CPP de que, ao elaborar os quesitos seja observado "os termos da pronúncia (decisão que manda o acusado à júri popular) ou decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes", e que neste aspecto, a descrição da conduta de Elissandro Spohr e de Mauro Hoffmann é de "revelando total indiferença e desprezo pela vida e pela segurança dos frequentadores do local, assumindo o risco de matar". No entanto, tal informação não constou no quesito, mesmo tendo sido solicitada durante a sessão tanto pelo defensor de Spohr como pelos defensores de Hoffmann. Para Marques, ao formular o quesito sem incluir tal descrição, Faccini Neto "sonegou a principal parte, ou seja, aquela que estabelece a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente".

Por fim, as duas defesas apontam que, em um dos quesitos, os jurados foram perguntados sobre uma conduta atribuída a Elissandro e Mauro, que fora retirada da acusação pelo Tribunal de Justiça. A questão diz respeito ao trecho em que o Ministério Público acusa os donos da boate de "prévia e genericamente ordenar aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem o pagamento das despesas de consumo na boate". O TJ considerou este aspecto como "narrativa artificiosa e excessiva". Mesmo retirado, este trecho da acusação constou no quesito.

Manifestação da plateia e parcialidade do juiz

Mário Cipriani e Bruno Seligman apontam ainda outra razão para que o julgamento seja anulado o fato de o magistrado ter permitido manifestações por parte da assistência, formada por sobreviventes e familiares. "Seguramente influenciaram no ânimo e concentração dos julgadores, com intensas atividades orais ou mesmo físicas, chegando mesmo haver discussão acirrada entre advogados e plateia", apontam. "Cabe lembrar das dezenas de vezes em que a defesa inquiria e os promotores de Justiça atuantes se deslocavam até a plateia e com abraços, falas, fotos, vídeos, desviavam e influenciavam os jurados. Tudo sem oposição do juízo, mesmo advertido pela defesa, especialmente durante o interrogatório do Mauro".

Jean Severo completa: "Foi possível constatar a manifestação da plateia, especialmente dos pais das vítimas, prejudicando sobremaneira a condução dos trabalhos e contaminando a psiquê dos jurados. Por vezes, se viu a advocacia sendo tratada de maneira jocosa, com tamanho desrespeito que arrancava risos e aplausos de quem estava no local", comenta o criminalista. Entre as manifestações registradas no plenário e trazida às razões estão, inclusive a realização de rodas de orações no plenário, durante a realização do julgamento.

Severo diz ainda que o Magistrado chegou a corroborar teses acusatórias. "O magistrado apresentou raciocínio contrário ao argumento defensivo ventilado no momento do julgamento, em frente aos jurados (quem sempre olha o Juiz como sendo máxima autoridade)", diz. Por fim, ele pontua que houve uma reunião particular entre o magistrado e os jurados, sem a presença das defesas, do MP ou de oficiais de Justiça.

Inovação da tese acusatória

No que diz respeito a Mauro Hoffmann, outro ponto levantado por Mário Cipriani e Bruno de Menezes é a chamada 'inovação da tese acusatória', que acontece em dois pontos, durante a réplica: quando o promotor de Justiça David Medina da Silva fala sobre a teoria da cegueira deliberada e sobre a teoria do domínio do fato. A segunda, que busca diferenciar autores e partícipes, para individualizar a punição de acordo com a participação de cada um, conforme os advogados, não se aplica ao processo da Kiss e jamais foi mencionada anteriormente. "Exatamente por ser inaplicável é que o Ministério Público, ao oferecer a denúncia em 2013, não a abordou", pontuam.

Já a cegueira deliberada, segundo eles, descreve situações em que o agente finge não perceber determinada ilicitude, para alcançar determinada vantagem. Eles explicam que quem finge não perceber determinada ilicitude, adota uma postura omissiva. "Sabendo do que ocorre, o agente nada faz para evitar, porque acabará se beneficiando da prática delitiva. É rigorosamente nesse ponto que reside a nulidade", alegam. Isso porque a sentença de pronúncia (decisão que manda os réus à júri popular) trata da participação de Mauro como condutas comissivas (que exige um comportamento ativo, a prática de uma ação).

"Por quase nove anos a acusação tentou demostrar a existência de um dolo eventual por parte de Mauro, objetivando comprovar, em resumo, que ele possuía poder de mando na boate e tinha conhecimento sobre os acontecimentos e gerenciamento do estabelecimento. É uma questão de lógica! Ou ele sabia e determinava o que acontecia dentro da boate, ou omitia-se por inteiro porque lhe convinha". Eles finalizam enfatizando que tal possibilidade jamais fora tratada no processo. "Pelo contrário, o que a acusação sempre buscou ressaltar era que Mauro era um empresário experiente e não deixaria a administração da casa sem tomar decisões diretas".

Decisão manifestamente contraria à prova dos autos.

Ainda que uma sessão de julgamento pelo júri popular transcorra sem nenhuma situação capaz de ensejar uma anulação - como ocorre na maioria das vezes - e que a decisão do conselho de sentença seja soberana, não podendo ser reformada por instâncias superiores, é prevista a anulação do julgamento caso seja comprovado que a decisão foi "manifestamente contrária à prova dos autos", ou seja, não quando não encontra provas no processo. As razões de apelação dos quatro réus também abordam esta questão.

Jader Marques argumenta que depois da pronúncia, especialmente nos dez dias de julgamento, "o que se produziu foi uma série notável de certezas, dentre as quais, a mais importante é a da absoluta ausência de prova de dolo eventual de Elissandro Spohr". Marques ressalta, entre outros pontos, o fato de que a boate estava aberta, pois "todos os agentes públicos, incluindo bombeiros, agentes da Prefeitura, um promotor de justiça, permitiram que isso acontecesse". "Elissandro, portanto, tinha todos os motivos para acreditar (piamente) que seu estabelecimento estava de acordo com as regras de segurança das pessoas", argumenta.

Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes também se valem deste argumento e acrescentam que o Conselho de Sentença não tinha elemento de prova para reconhecer em Mauro o dolo eventual, e que o que havia era "comoção social por um resultado realmente assustador". "Sequer o MP conseguiu identificar qual a conduta dolosa de Mauro, tanto que mudou a tese acusatória no plenário, inovando ilegalmente", alegam, completando que "Mauro se tornou réu do processo por opção do MP para auto-excluir da acusação, não por existência de prova", dizem.

Severo diz que a prova que forma os autos e a própria narrativa acusatória aponta para um agir culposo. "Todas as circunstâncias, a bem da verdade, constituem, no máximo, indícios de culpa por parte do Luciano, que teria agido com imprudência ou negligência, mas não caracterizam o dolo eventual, porque delas não se extrai qualquer consentimento dele para com o resultado danoso".

Tatiana Borsa diz que pelas provas apresentadas, "fica evidente que Marcelo jamais foi indiferente, assumiu qualquer risco de colocar fogo na Boate Kiss. "Podemos afirmar, e ficou evidenciado, que nunca existiu na conduta do réu o dolo eventual, ou seja, nunca existiu a previsibilidade da possibilidade de matar pessoas em razão da falta de segurança, pois isso fugia de sua reponsabilidade ou conhecimento", diz.

Prisão

Após uma decisão surpreendente e polêmica do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, que suspendeu o habeas corpus concedido em favor dos quatro réus - antes mesmo do julgamento dele - Mauro, Kiko, Marcelo e Luciano aguardam presos o julgamento dos recursos. De acordo com os advogados, eles estão ansiosos pela decisão dos desembargadores e "confiantes de que finalmente seja feita justiça", com a anulação do júri e determinação de que haja um novo julgamento.

O que diz o Ministério Público

Em praticamente todos os pontos elencados pelas defesas, a resposta do Ministério Público foi de que "a irresignação ficou no plano das alegações, pois não restou demonstrado, de forma específica e discriminada, o prejuízo aos réus", ou que as defesas deixaram de se manifestar sobre tais questões durante o julgamento, perdendo o momento para apontar as nulidades, portanto, elas estariam preclusas.

É o caso, por exemplo, da chamada imputação excessiva e artificiosa levantada pelas defesas de Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann por conta de o magistrado ter questionado os jurados sobre alegação que fora retirada da acusação pelo TJ. Em suas razões, porém, as defesas pontuam que o devido registro fora feito.

Outra nulidade apontada - pelas quatro defesas - foi a referência ao silêncio dos réus tanto por parte do Ministério Público, quanto da assistência de acusação. Neste aspecto, o MP não nega, mas diz que "o Juiz Presidente contornou a situação de imediato, tomando a palavra e afastando qualquer nulidade" e que não há provas de que a menção ao silêncio dos réus tenha, de fato, lhes gerado prejuízo.

Sobre ter feito uso do Sistema de Consultas Integradas da Secretaria de Segurança Pública para criar um perfil dos jurados, apontado como quebra da paridade de armas, já que tal ferramenta não está à disposição das defesas, os promotores alegaram que o uso é fruto de um convênio com o Poder Executivo, logo "a OAB, como instituição, e a Defensoria Pública também podem dispor das informações constantes no SCI", bastando que "formalizasse convênio com a Secretária de Segurança Pública".

Sobre as alegações de parcialidade por parte do juiz Orlando Faccini Neto, o MP diz que "não há qualquer indício que o Magistrado assim tenha agido", e que "a questão não foi arguida no momento oportuno, qual seja, em plenário de julgamento, consequentemente, eventual nulidade está alcançada pela preclusão"

Em outro ponto, os promotores rebatem a alegação de nulidade apontada pela defesa de Luciano Bonilha por conta de uma reunião particular entre o juiz e os jurados, após a fala de uma das defesas durante os debates. Segundo o MP, a reunião reservada nunca ocorreu. Entretanto, na transmissão do julgamento, disponível no canal do Tribunal de Justiça no YouTube, é possível observar o momento em que Orlando Faccini Neto paralisa o julgamento dizendo que está "interrompendo os trabalhos, por cinco minutos, para me reunir com os jurados só eu".


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